Recentemente baixei a trilha sonora de "O Piano" (The Piano, Nova Zelândia, 1993), filme dirigido por Jane Campion. . Uma das faixas deste album me toca em espacial. Chama-se "The mood that passes through you", de autoria do Michael Nyman.
A melodia começa com tons mais graves e depois vai ficando com o som mais agudo. Porém, em algum momento, eu começo a achar que a música desanda, perde seu ritmo e poderia ficar nas teclas mais à direita. Se eu tenho críticas à música, por que continuo escutando? Isto me fez pensar que eu gosto mais da música pelo o que ela representa dentro do filme do que necessariamente pela melodia dela. E então eu lembrei da cena, que agora conto pra vocês.
No entanto, é preciso fazer antes uma pequena sinopse do filme para situar esta cena:
SPOILERS OPEN
Ada (Holly Hunter) é uma mãe solteira muda que vivia na Escócia do século XIX. Seu pai realiza um casamento arranjado com um colono britânico na Nova Zelândia, de modo que ela e sua pequena filha (Anna Paquin) se mudam para as terras exóticas daquela ilha no Pacífico.
Enquanto esperam pela chegada do seu novo marido Alisdair (Sam Neil) na praia deserta em que desembarcam, Ada toca músicas no piano. O filme utiliza-se de uma voz off (artifício desnecessário, diga-se de passagem) para mostrar a paixão que esta tem por seu piano, em que ela indica que sentirá falta de tocá-lo durante a longa viagem que fará até a Nova Zelândia. Durante a espera, mostra-se o seu rosto enquanto toca o instrumento, em que os olhos se fecham e o sorriso se abre sem muito intuito.
A chegada no novo marido para buscá-la na praia, no entanto, começa mal. Este, incapaz de perceber a importância do instrumento, não se dispõe a levá-lo para a fazenda por ser muito pesada. Ada esperneia, faz linguagem de sinais para a filha tentar impedi-lo de deixar o piano no mar, fica emburrada. Todas essas ações, em vão, revelam que Ada vê naquele instrumento muito mais do que um lazer, mas também um instrumento de comunicação. E todo o filme é neste sentido: um desentendimento levando às consequências de um relacionamento que jamais irá decolar, porque o piano é onde Ada se impõe, por onde ela pode se comunicar.
Neste meio tempo, entra um capataz Baines (Harvey Keitel), que tem uma sensibilidade maior em perceber como aquele instrumento é, para Ada, tão importante. Ao vê-la pedindo para ser levada com a filha para praia, o capataz pede para Alisdair o piano para sua casa. Ada reluta, mas depois descobre que poderá tocar o piano na casa do capataz.
Durante esses encontros na casa de Baines, este intensifica seus desejos por Ada, que também fica desejosa por alguém que lhe deu acesso ao piano. Mas Baines, por mais sensível, vê também que conseguirá algumas coisas em troca do piano. Assim ele começa a barganhar o instrumento em troca de pequenos favores, como tocar em suas pernas, abraçá-la, beijá-la. Ada, agora casada, reluta em ceder a Baines, mas ao mesmo tempo começa a sentir prazer em ser desejada, ficando um pouco grata por ele dar acesso ao seu piano,.
Nesses pequenos encontros, acontece a cena que eu acho sensacional. Por volta de 40 minutos de projeção, Baines pede para Ada tocar o piano. Ada se vira e "The mood that passes through" entoa belamente, no momento em que Baines começa a tocar em suas costas. A melodia vai ficando aguda e o movimento da cena mostra que Ada também estava gostando do toque. Baines vê na recepção um momento de aumentar a intensidade do toque, mas Ada, ainda receosa com os desejos que estava sentindo, começa a tocar uma outra melodia, quase uma marchinha. Interrompe-se o contato.
Se vocês viram pela descrição, a cena não tem mais de 2 minutos. Porém eu acho a Jane Campion genial neste sentido. Trata-se de um prazer interrompido, de alguém que muda da melodia sedutora para a barulhenta em busca de interromper um desejo com culpa. Como espectador, fiquei com uma vontade tremenda que aquele ato se consumasse, que a Ada cedesse e que o Baines se saciasse, mas não: voltamos ao mundo normal, onde os desejos são contidos e senti-los é um momento de culpa.
Por conseguir utilizar a trilha sonora como parte da comunicação de Ada e por expressar um desejo interrompido pela culpa, eu gosto muito de "The mood that passes through". A cena, para mim, é belíssima, apesar de não consegui achá-la no youtube.
No mais, fica a indicação do filme. Hoje, depois de tanto assisti-lo, acredito que ele perdeu um pouco do brilho. Mas, mesmo assim, vale muito a pena.

