"É melhor morrer jovem enquanto está no auge". O auge, entretanto, já se foi há muito tempo.
Lacraia tem este apelido por ser uma dançarina de grande desenvoltura corporal. Diferentemente, Aluisio de Azevedo, no seu romance "O Cortiço", descreve uma personagem, a Rita Baiana, não por meio de um apelido, mas pela metáfora "requebrava como uma cobra". Mais de um século de diferença, nem há mais razões de se utilizar da metáfora "como uma cobra"; a metonímia serve bem melhor, economiza palavras. Aliás, a metonímia assume a nossa animalidade. Agora somos tigrões, cachorras, melancias.
Lacraia é símbolo dessa mudança, mostrando que a distinção "natureza e cultura" é de uma epistemologia retrógrada, machista e heteronormativa. Ser meio animal permite romper com oposições que calam quem não se enquadra nelas.
Lacraia, meio homem, meio mulher e meio animal, foi duramente criticada quando surgiu no Domingo Legal do ano de 2003. Pais ficaram enfurecidos em dar destaque a um indivíduo que ensinava às pessoas demonstrarem sexualidade de maneira dúbia. É como se ela fosse um sapato que jamais poderia ser colocado em cima da mesa. A Lacraia, em si, não era "suja", mas o lugar dela não "era no domingo à tarde". Como sapato, seu lugar era o chão. Ainda bem que a Lacraia teve voz (e imagem) e que as pessoas sintonizaram às televisões para ver seu requebrado e escutar McSerginho.
Lacraia trouxe voz aos híbridos da natureza e da cultura. Pode não ter ficado no auge e ter morrido em um ostracismo relativo, já que agora a moda é mulheres frutas. Mas as mulheres frutas só têm voz hoje porque um dia foi permitido que a mulher réptil dançasse "tô mandando um beijinho pra filhinha e pra vovó/ só não posso esquecer da minha égua pocotó".
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